Uma secção importante da nossa coleção no Espaço Atlântida é dedicada aos contos de fadas e aos contos folclóricos.
Porque é que estas histórias são importantes?
Na entusiasmante autobiografia «Pai e Filho», o crítico inglês Edmundo Gosse conta que na casa dos seus pais, calvinista e austera, as obras de ficção estavam proibidas. «Em toda a minha primeira infância, nunca ninguém me recitou o ternurento preâmbulo “Era uma vez…”. Contavam-me histórias de missionários, mas nunca de piratas; eu sabia o que era um beija-flor, mas nunca tinha ouvido falar de fadas. Jack, o matador de gigantes, Rumpelstilzchen e Robin dos Bosques não faziam parte do meu círculo e, embora eu soubesse coisas sobre lobos, o Capuchinho Vermelho era um perfeito estranho, mesmo de nome. No que diz respeito à minha “devoção”, só posso pensar que os meus pais cometeram um erro ao excluírem o imaginário da minha perspetiva dos factos. A sua intenção era que eu viesse a ser honesto; mas a tendência era tornar-me positivista e cético. Se me tivessem embrulhado nas camadas macias da fantasia sobrenatural, talvez o meu espírito se tivesse contentado durante mais tempo em adotar as tradições deles sem as questionar.»
Tal como Gosse veio a descobrir, os contos de fadas não são mentirosos, ainda que não convoquem as verdades do nosso mundo por meio de considerações factuais e racionais. No seu Diário, o jovem Sebastião da Gama escreveu: «As fadas existem e o Menino Jesus existe, para quem acredita neles.» Umas das vantagens dos contos de fadas é o facto de se moverem no reino da bizarria, numa geografia da imaginação em roda livre: do alto das torres dos castelos encantados e do fundo das tocas do mundo dos elfos, os contos de fadas permitem que contemplemos as nossas alegrias secretas e os nossos medos ocultos, sonhos loucos de aventuras e o terror do desconhecido. Disfarçados de fadas, colocam diante de nós o absurdo das convenções sociais, das políticas familiares e da relação com a autoridade. No dia-a-dia do nosso mundo, qualquer magia que encontremos se confronta com uma explicação científica ou burocrática, e cada morte que vivemos é para sempre. Contudo, por detrás de cada resposta factual e desprovida de absurdo, espreita uma prole de questões obscuras e insidiosas que nos obriga a desconfiar de tais complacências. Dante chamou a estas ficções non falsi errori, «erros que não são falsos».
Como se explica o nosso fascínio transversal e perene pelos contos de fadas?
O que nos agrada na premissa «Há muito, muito tempo, numa terra longínqua»? Por que razão queremos escutar, uma e outra vez, a saga de belas princesas, heróis valentes, animais engenhosos que sabem falar, lobos famintos e ogres peludos, velhas gentis e bruxas más
Marina Warner, estudiosa britânica do género, aponta quatro características que definem um genuíno conto de fadas: primeiro, a extensão (deve ser curto); segundo, deve ser (ou parecer) familiar; terceiro, deve sugerir «a presença necessária do passado», através de enredos e personagens reconhecíveis; quarto, uma vez que os contos de fadas são narrados num «esperanto simbólico», deve permitir que ações horrendas e acontecimentos truculentos sejam tomados como literais. Se, como afirma Warner, «o alcance de um conto de fadas é definido pela linguagem», então é por meio da linguagem que o nosso mundo subconsciente, com os seus sonhos e intuições meio vagas, se torna real e os seus fantasmas se transformam em figuras inteligíveis, como gigantes canibais ou progenitores perversos ou bestas amigáveis.
Há duas palavras alemãs distintas para contos de fadas: Wundermärchen, que são as histórias populares genuínas, e Kunstmärchen, que são as histórias de encantar literárias. Estas últimas foram motivadas por uma vontade intelectual, surgida no Romantismo, de resgatar as primeiras. Os movimentos nacionalistas que apareceram na Europa entre os séculos XVII e XIX conduziram a uma procura exaustiva de material popular original, o qual serviria para definir de alguma maneira a alma dos países emergentes e dos países aglutinados. Assim surgiram, claro, os contos dos Irmãos Grimm, de Hans Christian Andersen, da Madame d’Aulnoy e do napolitano Giambattista Basile (cujo Pentamerone foi descrito por Benedetto Croce como «a obra mais bela do Barroco italiano»).
As fábulas eram dadas a conhecer aos Irmãos Grimm e seus camaradas pelos contadores de histórias das povoações e por criados idosos, sobretudo mulheres. Estes contadores de histórias tinham por sua vez ouvido as fábulas contadas pelos mais velhos, e depois enfeitavam-nas e mudavam-nas de acordo com as suas circunstâncias e inclinações pessoais, enquanto as relatavam ao seu público, fazendo vozes diferentes e gestos reconhecíveis. Quando os Irmãos Grimm e outros «caçadores de autenticidade» transcreviam essas histórias, voltavam a mudar o texto, ajustando-o ao que lhes parecesse um estilo verdadeiramente popular, inventando para este fim uma voz narrativa que acabou por ser tomada como o género do conto de fadas.
Era gigantesca a popularidade, influência e prevalência destes contos de fadas, na sua forma editada e publicada, o que não somente ajudou a definir, no começo do século XIX, aquilo que passou a designar-se como «literatura infantil», mas também contaminou toda a ficção séria com a possibilidade de contar histórias de um modo inovador, tomado como «popular». As irmãs Brontë, Mazzoni, Lermontov, George Sand, Proust, Eça de Queirós, Oscar Wilde e muitíssimos outros têm uma dívida literária para com estes colecionadores e (re)contadores. Dickens, sobretudo, escreveu sob esta influência, de tal modo que os seus romances (como Chesterton acertadamente observou) são todos, de uma forma ou de outra, contos de fadas. Quando Scrooge está diante do primeiro espírito, vê-se a si próprio em criança abandonado numa sala de aula vazia no Natal, mas rodeado pelas personagens dos contos de fadas que está a ler. Valentine e Orson, do romance carolíngio, Ali Babá e o génio, d’As Mil e Uma Noites, e até mesmo Robinson Crusoe e o seu papagaio: todos se transformavam, na imaginação ávida do rapaz, em habitantes do mundo encantado.
Pejados de enredos repetidos e personagens recorrentes, contados e recontados desde a China e Índia antigas até à Europa vitoriana e à América contemporânea, o que terão ainda a dizer os contos de fadas sobre a condição humana?
Paula Rego, uma artista cujo mundo dos sonhos faz parte da Terra das Fadas, acredita que as histórias tradicionais são essenciais para descobrir o mundo e quem somos, e coloca os contos de fadas portugueses entre os melhores de todos, porque «mostram a natureza humana como ela é». O facto de a história da Cinderela surgir de uma certa forma na China do século IX, de outra forma na Nápoles seiscentista, noutra diferente na França de 1690 e ainda noutra, cem anos mais tarde, na Escócia, denota um subconsciente humano comum e ancestral, ou é antes evidência de intercâmbios e influências culturais mais fortes do que poderia suspeitar o mais viajado dos académicos?
Os narradores de contos de fadas dos nossos tempos reconhecem este imaginário partilhado: Angela Carter em Inglaterra, Ludmila Petrushevskaya na Rússia, Michel Tournier em França, Sophia de Mello Breyner Andresen em Portugal, Margaret Atwood no Canadá.
Os historiadores do folclore tentaram encontrar acontecimentos reais que pudessem explicar a origem de algumas histórias (Gilles de Rais como a inspiração para o Barba Azul, ou a Besta de Gévaudan no caso do Capuchinho Vermelho), mas as areias deste género de exploração são movediças. Quando se debruça sobre os contos de fadas, também a Psicologia opera em território nebuloso: o vocabulário simbólico da nossa psique (sendo que este «nossa» acaba por trair uma intuição de universalidade) é interpretado de acordo com as convenções da tribo a que cada indivíduo pertence, tornando difícil determinar que estas transposições distintas de imagens de medo, amor, família, coragem e confiança emanam de um modelo original comum e incomensurável. Não há nenhuma leitura crítica dos contos de fadas capaz de fornecer uma explicação única, incontestável e límpida. Não parece haver nada que consiga explicar as paisagens fantásticas longínquas, de tal modo estas aparecem carregadas de aposentos sangrentos e florestas escuras e ameaçadoras. Indiferentes a todos os esforços para dissecar e analisar o seu modo de funcionamento – e para engavetar a Branca de Neve e o Gato das Botas em categorias bem definidas –, os contos de fadas escapam incólumes e revelam-se prontos para serem narrados outra vez.